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Licença compulsória de patentes no Brasil: histórico e possibilidades

Por: Ana Beatriz Lage

Certamente, um dos assuntos mais comentados e polêmicos dos últimos tempos, tendo em vista a atual discussão sobre vacinas da Covid-19, é a questão da licença compulsória, ou mais comumente denominada a “quebra de patentes”. A pandemia do novo coronavírus, razão da incessante busca por vacinas, medicamentos e acessórios hospitalares, tais como kits próprios para intubação dos pacientes, trouxe à tona o tema da propriedade intelectual, com foco na extensão dos prazos das patentes, bem como se há algum meio de impedir o monopólio decorrente destas.

Desta forma, nota-se uma avalanche de inúmeras matérias jornalísticas, pareceres e opiniões públicas que surgiram clamando para que patentes sejam “quebradas”, de forma a conferir à esta propriedade intelectual a função social disposta no inciso XXIII, do artigo 5º da Constituição Federal[1]. Inicialmente, faz-se necessário adentrar num breve contexto histórico a respeito das patentes e a possibilidade de licença compulsória destas.

Destaca-se que a legislação específica sobre o assunto, vigente no Brasil, é a Lei nº 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial – LPI). Além disso, é signatário das principais convenções do tema, como Convenção de Paris (CUP) e Convenção de Berna (CUB). Ainda, também assinou o Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (de acrônimo em inglês TRIPS).

A patente é um privilégio, concedido a um inventor capaz de desenvolver uma invenção cumprindo todos os requisitos de patenteabilidade estabelecidos no artigo 8º da Lei de Propriedade Industrial, quais sejam, novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Ou seja, trata-se de forma de compensar com a exclusividade de exploração o inventor que, após dispender de seu tempo e meios financeiros, encontrou uma solução inovadora o suficiente para se diferenciar das demais já existentes no mundo.

As empresas, e neste artigo destaca-se a indústria farmacêutica, em vista de se tornarem competitivas, estão sempre em busca de soluções inovadoras para problemas já existentes, sejam elas uma nova tecnologia ou compostos químicos capazes de conferir a um novo medicamento a cura ou tratamento de doenças. Para tanto, dispendem de vultuosas quantias financeiras, bem como tempo, em busca de tais soluções o mais rápido possível, como estamos vivenciando no momento, com a elaboração de vacinas para a Covid-19 em menos de um ano, o que só foi possível em razão de tais pesquisas.

  Para que tal retorno financeiro chegue até elas, as indústrias contam com a segurança oferecida pelo sistema jurídico nacional, que garante que licenças compulsórias somente poderão ocorrer em casos especificamente previstos em lei, como na Seção III da LPI. Do mesmo modo, o TRIPS em seu artigo 31, dispõe de uma série de condições para a ocorrência de licenciamento compulsório. Isto porque, em nome da segurança jurídica, não há como dispor de um rol taxativo de situações que incorrerão nesta situação específica.

Ainda, a alínea (b) do artigo 31 do TRIPS estabelece que o uso da patente sem autorização do titular somente poderá se dar após a tentativa falha, por parte do governo, de realizar acordos em termos e condições consideradas razoáveis para comercialização do objeto da patente, o que é dispensado somente em caso de emergência nacional. Inclusive, há no histórico brasileiro ações governamentais em conjunto com farmacêuticas, com o objetivo de redução do valor do medicamento em contrapartida da não declaração de licença compulsória, como em 2001, no acordo firmado entre o Ministério da Saúde e algumas farmacêuticas, na qual o laboratório do Instituto de Tecnologia em Fármacos – Farmanguinhos estabeleceu os custos de produção após ameaça de licença compulsória. A consequência foi, portanto, a redução de preços de antirretrovirais sem a necessidade de concessão de licença compulsória. Situações e acordos similares também ocorreram em 2003 e 2005.

Dito isto, ressalta-se que, cumpridos todos os requisitos legislativos, e passando-se a decidir pela ocorrência de licença compulsória, dentre as condições estabelecidas pela legislação em nenhuma delas há, de fato, a quebra da patente, que em momento algum passa a ser invalidada ou inexistente. Conforme explica o Decreto n. 3.201/1999, o que ocorre é, quando necessário, a transferência da tecnologia por parte do detentor da patente ao Estado, que passará a produzir, ou contratar terceiros para tanto, o objeto da patente e comercializá-lo, de forma a suprir os motivos pelo qual foi concedida a licença compulsória. Em contrapartida, há o dever de realizar o pagamento de royalties ao detentor da patente.

Ainda, conforme dispõe o referido decreto, em seu artigo 5º, o ato de concessão da licença compulsória deverá, obrigatoriamente, dispor a respeito do prazo desta. Desta forma, ultrapassado o lapso temporal determinado, caso a patente ainda vigore, esta voltará a ser de exploração exclusiva de seu titular.

No Brasil, a única ocorrência de concessão de licença compulsória se deu em maio de 2007, para a patente do medicamento efavirenz, antirretroviral utilizado no tratamento de AIDS e produzido pela farmacêutica Merck Sharp & Dohme, em razão dos considerados altos preços praticados há época pela farmacêutica. Por quase dois anos, importou-se o produto genérico de empresas indianas, até que o país alcançasse capacidade técnica de produção local, o que ocorreu a partir de fevereiro de 2009.

Diante de todo o exposto, ainda é possível que se paire a dúvida do porquê, então, não se concede licença compulsória para toda e qualquer patente quando se fizer necessário, seja pelos preços elevados para medicamentos importantes na saúde pública ou pelo não suprimento da necessidade do mercado, dentre outras questões? Sem sombra de dúvida, o assunto envolvendo licença compulsória extrapola os direitos de propriedade intelectual devendo também serem considerados os aspectos políticos, de saúde pública e econômicos.

Há um grande debate a respeito da dicotomia existente entre: conceder uma patente pelo prazo de vinte anos, conforme estabelecido na legislação pertinente, o que é considerado por muitos uma atitude puramente econômica que beneficia apenas as grandes indústrias, ou, em momentos cruciais de obtenção destes medicamentos, como no caso do coronavírus ou no exemplo da AIDS com efavirenz, licenciá-la, de modo a pausar a exclusividade do detentor da patente e permitir a produção pelo governo ou terceiros devidamente contratados.

Nesse contexto, necessário se faz pensar que o direito à exploração econômica de forma exclusiva por parte de farmacêuticas não é benéfico apenas às empresas que auferem lucros com as vendas deste produto. Por óbvio, a busca por medicamentos de uso exclusivo, que muitas vezes alcançam valores exorbitantes, deve partir de ações governamentais que forneçam à população aquilo que ela necessita, ampliando o seu acesso à produtos inovadores. Entretanto, não se pode esquecer que tais empresas desembolsam milhares de reais em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e o fazem apoiando-se na garantia legal de que terão retornos que não só pagarão estes investimentos como o superarão, trazendo o lucro esperado.

No contexto geral, é sabido que sem retorno financeiro, não há inovação, e sem inovação não há benefício à sociedade como um todo. Há de se ter um equilíbrio entre os interesses particulares e públicos, motivo pela qual as patentes existem, porém em um prazo delimitado.  

Outro ponto a evidenciar é que, no caso de licenciamento compulsório em razão de não satisfação às necessidades do mercado, como dispõe o inciso II do artigo 68 da LPI, de nada adianta a sua concessão se a indústria nacional não tiver capacidade e insumos suficientes para produzir o produto originário da patente licenciada. Este é, inclusive, um dos maiores problemas enfrentados atualmente no cenário nacional. Há uma enorme discussão a respeito da “quebra de patentes” relacionadas à vacina da Covid-19, sendo que até mesmo as indústrias já se manifestaram afirmando não ter condições de capacidade de produção.

É notório que o Brasil dispõe de laboratórios capacitados à produção de vacinas em larga escala, como o Instituto Butantan e a Fiocruz. Entretanto é fortemente dependente da importação de insumos farmacêuticos ativos (IFA) para a fabricação de vacinas em território nacional. No caso da Covid-19, por exemplo, foi declarado pela presidente da Fiocruz, em dezembro de 2020, a ausência de capacidade de produção em escala da vacina da Pfizer, por ausência de tecnologia para tanto no território nacional[2]. Nestes casos, outra saída é a licença voluntária, por parte das empresas, como vem acontecendo com diversas indústrias, como no caso da Moderna[3].

Desta forma, importante salientar que não há um caminho simples para encontrar a solução deste caso concreto. Mesmo em um momento crítico de saúde pública, como o que vivemos atualmente, é fundamental encontrar o equilíbrio na busca de entre a função social da propriedade com o fornecimento à tratamentos e medicamentos detentores de patente e a segurança jurídica necessária para que as empresas sigam empenhadas no investimento em P&D, impulsionando a inovação no país, lembrando que a saída do licenciamento compulsório nem sempre é a melhor forma de se alcançar um objetivo em comum, lembrando da necessidade de cooperação técnica com os detentores do direito da patente, uma vez que  ainda há uma grande dependência de insumos e tecnologia.


[1]  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

[2] Disponível em < https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/14/fiocruz-diz-que-brasil-nao-tem-tecnologia-para-produzir-vacina-da-pfizer> Acesso em 29 de abril de 2021.

[3] Disponível em https://investors.modernatx.com/news-releases/news-release-details/statement-moderna-intellectual-property-matters-during-covid-19 Acesso em 28 de abril de 2021.

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